Bloco Associe-se

Associe-se ao Idec

Carta à Sociedade Brasileira em Defesa da Regulamentação da Publicidade de Alimentos Não Saudáveis como Direito de Cidadania

separador

Atualizado: 

13/10/2017
Mariana Ferraz
O Brasil, enquanto Estado Social e Democrático de Direito, encontra-se organizado a partir da Constituição de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”. É o primeiro texto constitucional a firmar o compromisso com a primazia dos direitos humanos, da reversão das desigualdades e a garantir posição topograficamente relevante aos direitos e garantias individuais e sociais: estes são descritos logo no início da Constituição, reforçando a importância e o compromisso do Estado Brasileiro com sua pronta implementação.
 
O artigo 6º inicia o capítulo “Dos direitos Sociais” e em seu caput encontram-se previstos os direitos a: “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Nota-se que o texto constitucional institui o dever de o Estado Brasileiro proteger e garantir a saúde e a alimentação dos cidadãos.
 
A alimentação, prevista pela Constituição Federal como um direito social, deve ser saudável e suficiente para assegurar o pleno desenvolvimento dos indivíduos, em particular daqueles que se encontram em processo de desenvolvimento. Adicionalmente, a promulgação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006) formalizou o objetivo de promover a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), através de políticas e programas públicos. Há de se destacar que o Estado Brasileiro tem, entre outras, a obrigação de buscar todos os meios para proteger as duas dimensões do DHAA, quais sejam, que todos os residentes de seu território estejam livres da fome e tenham uma alimentação adequada.
 
O direito à alimentação e o direito à saúde relacionam-se diretamente com a temática da alimentação saudável. É dizer, a proteção à saúde é dever do Estado e direito do cidadão e deve ser garantida tanto na vertente positiva quanto negativa, devendo o governo tomar todas as medidas necessárias para tanto, promovendo serviços adequados de saúde e regulamentando e fiscalizando as ações da iniciativa privada de maneira que estas não inflijam dano à saúde das pessoas.
 
Nesse contexto, é imperioso notar que a proteção da saúde pressupõe o dever de informar sobre o risco do consumo excessivo de alimentos altamente calóricos, ricos em açúcar, gorduras não saudáveis e sódio, características encontradas na imensa maioria dos alimentos altamente processados, alimentos esses presentes em cerca de 95% da publicidade de alimentos veiculada no país, inclusive naquela dirigida especificamente ao público infantil.
 
É inegável do ponto de vista científico o efeito da publicidade sobre a decisão de compra e escolha das famílias. No caso das crianças, há fortes evidências de que a publicidade televisiva, em um prazo curto de tempo, influencia o consumo semanal e até diário das crianças, levando-as a preferir e pedir alimentos e bebidas com alto teor calórico e baixo teor nutritivo. Ressalta-se que os hábitos alimentares formados na infância são levados para toda a vida, sendo muito difícil revertê-los posteriormente. Logo, uma comunidade que pauta sua alimentação no consumo excessivo de produtos altamente processados tende a se tornar uma população com problemas de sobrepeso, obesidade e doenças relacionadas.
 
A necessidade de informar a população acerca dos malefícios do consumo excessivo de determinados produtos alimentícios decorre de previsões da legislação sanitária nacional e mundial, em especial quando o seu consumo é incentivado pela publicidade e quando esta se dirige a crianças, mais vulneráveis aos apelos promocionais. Exigir que esta publicidade apresente uma informação completa e exata sobre a qualidade nutricional de produtos que colocam em risco a saúde e a qualidade de vida das pessoas cumpre assim, em um só tempo, dois importantes e fundamentais direitos constitucionais: o provimento da saúde e a garantia da informação precisa.
 
Dados das Pesquisas de Orçamentos Familiares do IBGE indicam um crescimento vertiginoso do consumo de alimentos altamente processados (IBGE, 1988; 2004). À medida que essa participação avança provocando mudanças drásticas no perfil alimentar da população brasileira, os impactos sobre a saúde passam a ameaçar a expectativa de vida das pessoas, impulsionando a configuração de problemas de saúde pública que demandam imediata ação do poder público.
 
Em 2006, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) propôs à sociedade brasileira um debate sobre a regulação da publicidade de alimentos por meio de um processo transparente e democrático que envolveu desde o princípio todos os atores sociais interessados. A Consulta Pública 71 esteve aberta a participação de todos, promovendo inclusive audiências públicas para que se pudesse melhor debater os argumentos dos diversos setores interessados, particularmente organizações de defesa dos direitos do consumidor e da saúde pública e o próprio setor regulado.
 
Deste amplo debate com a sociedade foi elaborada a Resolução da Diretoria Colegiada da ANVISA - RDC nº 24, de 15 de junho de 2010, publicada em 29 de junho de 2010. A RDC nº 24/2010 é a primeira iniciativa organizada do Estado Brasileiro de cumprir com sua obrigação de proteger o Direito Humano à Alimentação Adequada frente à publicidade massiva que preconiza diariamente o consumo de alimentos altamente calóricos, mas com baixo valor nutricional, cujo consumo excessivo tem provocado um desequilíbrio na alimentação da população e comprometido sua saúde, além de suas tradições alimentares e identidades culturais.
 
Em 2005, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a publicidade de alimentos não saudáveis direcionada ao público infantil como um fator que contribui para o aumento dos níveis de obesidade e sobrepeso. Em maio de 2010 foi aprovada pela Assembléia Mundial da Saúde, composta por Estados-parte da OMS, recomendações que orientam os países a adotarem medidas restritivas à publicidade destes alimentos como parte integrante das políticas públicas de promoção de práticas alimentares saudáveis.
 
A pesquisa domiciliar do IBGE de 2008-2009 confirma o crescimento explosivo da obesidade no Brasil nas três últimas décadas, revelando que apresentavam peso excessivo metade dos indivíduos adultos, uma em cada três crianças de 5 a 9 anos e um em cada cinco adolescentes. No mesmo período, deteriorou-se o padrão de consumo alimentar da população, assistindo-se a substituição de alimentos tradicionais e saudáveis da dieta brasileira, como a mistura arroz e feijão, por bebidas e alimentos altamente processados, densamente calóricos e com baixa concentração de nutrientes (IBGE, 2010).
 
Os dados alarmantes indicam que a reversão deste quadro requer reforços urgentes à altura da força e velocidade com a qual essas mudanças foram provocadas. O consumo excessivo de alimentos com altas concentrações de açúcar, sódio, gordura saturada e/ou gordura trans pela população brasileira, alavancado pelo estímulo bem-sucedido ao consumo irrestrito desses alimentos por meio da publicidade, agora se revela nas estatísticas de excesso de peso e obesidade. Por conseguinte, implicarão um aumento da parcela da população que é ou será futuramente acometida por doenças cardiovasculares, diabetes, vários tipos de câncer, entre outras doenças. Segundo o Fundo Mundial para Pesquisa contra o Câncer e Instituto Nacional de Câncer do Ministério da Saúde do Brasil (WCRF/INCA, 2009), no Brasil a obesidade é responsável por: 29% dos casos de câncer de endométrio; 26% e 20% dos casos de câncer de esôfago em mulheres e homens, respectivamente; 25% e 14% dos casos de câncer de pâncreas em homens e mulheres, respectivamente; e 14% dos casos de câncer de mama. Com relação ao conjunto de doenças crônicas, o Ministério da Saúde (MS/SVS/DASIS, 2004) considera que 90% dos óbitos por diabetes e 50% dos óbitos por acidente vascular cerebral e doenças isquêmicas do coração são potencialmente evitáveis com a adoção de uma alimentação adequada e saudável.
 
Informações sobre a necessidade de limitar o consumo de alimentos com altas concentrações de açúcar, sódio, gordura saturada e/ou gordura trans e evitar suas conseqüências danosas chegam para a população de forma descompassada e desproporcional ao estímulo incessante para o seu consumo diário. A RDC nº 24/2010 é a oportunidade de difundir de forma eficaz informações sobre os riscos associados ao consumo desses alimentos na mesma escala em que é estimulado o consumo irrestrito dos mesmos por meio da publicidade.
 
Os impactos esperados a partir da implementação efetiva da RDC nº 24/2010 são bastante positivos considerando os históricos avanços que o Brasil tem experimentado neste campo. As exemplares melhorias para saúde brasileira alcançadas a partir das ações de Controle do Tabagismo no País (entre 1989 e 2003 a proporção de fumantes adultos foi reduzida em 35% – 2,5% ao ano –, e entre os mais jovens em 40%), tiveram como ponto de partida fundamental a regulamentação da publicidade (Monteiro et al., 2007). Do ponto de vista do impacto no mercado de trabalho do setor regulado, avaliações feitas pelo Banco Mundial demonstram que intervenções até mais rigorosas que a regulamentação da publicidade, como o aumento dos impostos sobre produtos regulados, voltadas à redução da demanda, não resultaram na redução de empregos no longo prazo (World Bank, 1999).
 
O impacto sobre o setor publicitário também não será significativo, uma vez que a RDC nº 24/2010 não prevê a proibição da publicidade de alimentos, apenas requer que, no caso de alimentos não saudáveis, o risco para a saúde associado ao consumo excessivo seja informado. Ainda assim, mesmo que haja algum impacto negativo para o setor regulado, este será pouco expressivo. Segundo o Ibope, a publicidade de alimentos representa apenas 3,5% do montante publicitário das agências e veículos. Em contrapartida, impactos positivos resultarão da poupança dos investimentos destinados ao manejo e tratamento de doenças relacionadas com a obesidade como doenças do coração, diabetes, e vários tipos de câncer. Analisando tratamentos mais caros, como é o caso dos tratamentos de câncer. A título de ilustração, contabilizando apenas o impacto econômico dos gastos com tratamento dos cânceres de esôfago, cólon e reto atribuídos à obesidade; estima-se que, além do sofrimento das pessoas acometidas pelos cânceres citados, e de seus familiares, ao final de 2010, o País terá deixado de poupar no mínimo 5 milhões de reais com o tratamento de 3500 novos casos desses cânceres atribuídos à obesidade (INCA, 2009; WCRF/INCA, 2009).
 
Informar a população sobre os riscos relacionados ao consumo excessivo de alimentos não saudáveis significa abraçar a responsabilidade de oferecer um ambiente favorável à vida e à saúde da população, significa poupar vidas e sofrimento de milhões de brasileiros, significa oportunizar a realocação de recursos do tratamento de doenças evitáveis para o investimento no enfrentamento de macro-determinantes da saúde, significa oferecer ferramentas indispensáveis à garantia da cidadania e soberania do povo brasileiro.
 
Importa ressaltar que a regulamentação da publicidade de alimentos não saudáveis não se constitui em censura ou obstrução à liberdade de expressão. Neste sentido já há manifestações pela validade e constitucionalidade desta norma assinada por Carlos Ari Sundfeld (FD/PUC-SP), Floriano de Azevedo Marques Neto (FD/USP), Dalmo de Abreu Dallari (FD/USP), Fábio Konder Comparato (FD/USP), Gilberto Bercovici (FD/USP), Marcelo Neves (FD/USP), Vidal Serrano Junior (PUC-SP), Walter Ghelfi (publicitário), Sueli Gandolfi Dallari (FSP/USP), Fernando Aith (CEPEDISA), Marco Aurélio Torronteguy (CEPEDISA). No documento “ANVISA E A REGULAÇÃO DE PUBLICIDADE DE ALIMENTOS” declaram que:
 
“ANVISA, ao editar a Resolução nº 24/2010, impõe condições à liberdade de expressão que estão em perfeita consonância com a Constituição Federal, na medida em que visam a proteger as pessoas e as famílias de propagandas que possam ser nocivas à saúde. Além disso, a Resolução nº 24/2010 não viola a competência de qualquer outra esfera regulatória, uma vez que na atual organização constitucional do sistema jurídico-sanitário brasileiro é a ANVISA quem detém a competência normativa para o controle de alimentos, inclusive de sua publicidade. Isso porque a Lei federal nº 9.782/99 estabelece para a ANVISA o dever de controlar, fiscalizar e acompanhar, sob o prisma da legislação sanitária, a propaganda e publicidade de produtos submetidos ao regime de vigilância sanitária, como os alimentos (art. 7º, XXVI c/c art. 8º, § 1º, II).
 
Todos os demais agentes regulatórios estão, portanto, obrigados a respeitar a normatização sobre a propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde editada pela ANVISA.” (http://www.cepedisa.org.br/adm/noticia_detalhe.aspx?id_noticia=784)
No momento que tomamos conhecimento da decisão da juíza Gilda Sigmaringa Seixas, da 16ª Vara Federal de Brasília que atendeu pedido da Associação Brasileira de Alimentos (ABIA) para suspender os efeitos da resolução da ANVISA, nós, membros de entidades da sociedade civil, instituições de pesquisa e outros abaixo assinados, conclamamos a justiça brasileira para assegurar a eficácia definitiva da RDC 24/2010.

Talvez também te interesse: