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Se arrependimento matasse...

Comércio Eletrônico

Se arrependimento matasse...

Pesquisa mostra que mais de dois terços dos maiores sites de venda pela internet no Brasil impõem condições ilegais ao direito de arrependimento. Levantamento identificou ainda falhas no fornecimento de informações básicas ao consumidor

Felipe comprou um aparelho de ar condicionado pela internet. Quando o produto foi entregue em sua casa, na cidade de Taquara (RS), ele abriu a embalagem e instalou o aparelho. Percebendo que era barulhento demais, decidiu exercer seu direito de arrependimento, garantido por lei até sete dias após a entrega do produto, e desistir da compra.

No entanto, ao solicitar a devolução, o consumidor foi surpreendido pela resposta do site de comércio eletrô-nico Kabum!, que afirmava que "o produto deveria estar na embalagem original, sem indícios de uso ou violação de lacre original do fabricante". Naturalmente, para saber que o aparelho era barulhento, o cliente pre-cisou abrir a embalagem e usar, ao menos uma vez, o ar-condicionado.

O caso de Felipe foi um dos diversos registrados sobre descumprimento do direito de arrependimento em janeiro deste ano no site consumidor.gov.br, gerido pelo Ministério da Justiça. As queixas têm sen-tido. Uma pesquisa realizada pelo Idec com os 21 maiores sites de e-commerce no Brasil mostrou que 67% deles impõem cláusulas abusivas e ilegais para que o consumidor exerça seu direito de arrependimento. A mais comum é exigir que a embalagem ou lacre não estejam rompidos e que não haja indícios de uso – como o relatado pelo consumidor de Taquara. Para piorar, constatou-se que, com exceção do Magazine Luiza, nenhum site pesquisado esclarece adequadamente o que são "indícios de uso", o que abre espaço para decisões arbitrárias sobre quando um produto foi utilizado ou não.

Outra irregularidade identificada em relação ao direito de arrependimento foi o repasse dos custos com frete para o consumidor, cometida pela Netshoes. "O Código de Defesa do Consumidor é muito claro ao afirmar que o direito de arrependimento inclui contratos acessórios, como frete. Esse é um valor que deve ser restituído", explica Rafael Zanatta, advogado do Idec e responsável pela pesquisa. Ele acrescenta, ainda, que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem posicionamento definitivo sobre o tema desde 2012, quando julgou recurso e manteve multa do Procon-SP à TV Sky Shop por ter cobrado frete de um consumidor por arrependimento.

E os problemas não param por aí: falta também transparência e clareza no fornecimento das informações ao consumidor sobre o direito de arrependimento no momento da compra. Dos 21 sites avaliados, somente cinco possuem uma seção específica intitulada "direito de arrependimento". A maioria dos sites pesquisados utiliza nomes alternativos, como "política de troca" e "termos de uso". "A lei não obriga o uso da expressão 'direito de arrependimento', mas obriga que a informação seja clara e ostensiva. Expressões como 'termos de uso' não são claras. O consumidor pode achar que se trata dos termos de uso convencionais de uma página, como os do Facebook, que tratam de coletas de dados", alerta Zanatta.

IMAGEM DE DESTAQUE

A pesquisa avaliou também o cumprimento de outros direitos pelas lojas virtuais e identificou outros problemas. Veja, a seguir, os principais.

Informações negligenciadas

Mais de 80% dos sites pesqui-sados apresentaram problemas em relação a duas informações fundamentais. A primeira delas diz respeito à discriminação, no preço final, de qualquer despesa adicional, como frete, instalação, seguro ou garantia estendida. Em simulação de compra de uma televisão no site do Extra, por exemplo, verificou-se que a empresa não discrimina o preço da instalação no sumário final da compra. Da mesma forma, a Taqi não apresenta uma descrição da somatória dos preços, indicando o valor do seguro apenas de forma parcelada.

A segunda informação negligenciada refere-se às restrições aplicáveis a promoções, como a quantidade de unidades que podem ser compradas por um cliente. O site Casas Bahia, por exemplo, exibia, em sua página principal, promoção de uma smart TV, mas só no momento da compra e do pagamento é que o consumidor descobria a existência de uma limitação de seis unidades por cliente.

Outra violação identificada foi a falta de transparência quanto à diferença de preço entre variações de um mesmo item. Nesses casos, ao escolher um tamanho ou cor diferentes de determinado produto, houve um acréscimo de valor, que pode não ser percebido pelo consumidor. Foi o que ocorreu no site Netshoes: uma nadadeira da marca Speedo era anunciada em promoção por R$ 159,90. No entanto, a oferta não esclarecia que o preço se apli-cava apenas ao tamanho P. Ao clicar na promoção e selecionar qualquer outro tamanho, o preço automatica-mente subia para R$ 194,97, induzin-do o consumidor a erro.

A mesma "pegadinha" ocor-reu com uma mochila Jansport Superbreak, anunciada no site Zattini, por R$ 149,90. O anúncio não deixava claro que a promoção só se aplicava à cor amarela; ao escolher outra cor, o consumidor deparava com o preço de R$ 169,90.

Resumo do contrato: ninguém sabe, ninguém viu...

A pesquisa verificou, ainda, que a forma como muitos sites apresentam o "sumário do contrato" – resumo com as principais informações sobre o produto, preço, modo de paga-mento, condições de entrega, frete, limitações e restrições – é falha. A legislação obriga que esse resumo seja apresentado de forma clara e ostensiva no momento final da tran-sação, mas antes de se consumar a contratação. Na prática, porém, os sites simplesmente adicionam um link para uma página externa com a íntegra do contrato.

Apenas cinco dos 21 sites ava-liados cumpriram plenamente as exigências de apresentação do sumário do contrato. "Não basta colocar uma cópia do contrato de prestação de serviço ou um link para o termo de uso. Ninguém vai ler. Por isso mesmo, o decreto obriga que o sumário seja apresentado antes de concluir a compra, em local de fácil visualização e compreensão", con- clui Zanatta.

O que as empresas disseram

O Idec comunicou os resultados da pesquisa a todos os sites avaliados. Até o fechamento desta edição, apenas três ha- viam respondido.

B2W (Americanas, Subma- rino, Shoptime e Soubarato): disse que todas as restrições de oferta são informadas duran- te o processo de compra, antes da exigência do login. Também afirma que o contrato inteiro é acessível no rodapé da página, não sendo necessária a inclu- são de um sumário. Porém, o Idec reitera que o resumo é exigi- do no decreto. Sobre as cláusu- las abusivas, alega apenas que "cumpre integralmente o artigo 49 do CDC".

Magazine Luiza: informou que acatará a sugestão do Idec de deixar mais clara as restri- ções de oferta e que vai avaliar a necessidade de inclusão de uma seção exclusiva sobre direi- to de arrependimento e de tornar mais ostensiva a apresenta- ção do sumário do contrato em sua página.

Privalia: alegou que apre- senta de forma clara e ostensiva as restrições da oferta, o sumário do contrato e as condições do direito de arrependimento em seu site. Informa também que vai expor de forma mais clara e detalhada os indícios de uso e as situações nas quais o lacre viola- do impossibilita o exercício do direito de arrependimento.

Como foi feita a pesquisa

A pesquisa avaliou 21 sites dos 10 maiores grupos de comércio eletrônico do Brasil, segundo dados da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo: Americanas.com, Submarino, Shoptime, Soubarato, Extra, Casas Bahia, Barateiro, Pontofrio, Magazine Luiza, Epoca Cosmeticos, Privalia, Netshoes, Zattini, Ricardo Eletro, Insinuante, Citylar, Taqi, Loja iPlace, Dell, Fastshop e A2U. Juntos, eles somam 61,5% do faturamento do setor no país.

O levantamento foi realizado de 1 a 14 de fevereiro de 2017. Foram feitas simulações de compras em cada um desses sites, analisando o cumprimento de três importantes aspectos exigidos pelo Decreto do Comércio Eletrônico (Decreto no 7.962/2013, que regulamenta o Código de Defesa do Consumidor): transparência e informação; regras de atendimento e contratação; e direito de arrependimento.